Justificativa - IV Congresso de Fenomenologia
O IV Congresso de Fenomenologia do Centro-Oeste com o tema Fenomenologia, técnica e ciências pretende não apenas rememorar alguns conceitos, questões e autores fundamentais para o movimento fenomenológico, mas contribuir efetivamente para a compreensão do fenômeno da técnica e das ciências numa perspectiva fenomenológica e no âmbito mesmo da chamada crise da Razão Moderna e seus conceitos chaves, tais como: Ser, Sujeito. Verdade, Unidade, Universalidade, etc.
Não há como negar um certo mal-estar gerado pela crescente desconfiança e suspeita em relação aos ideais iluministas e positivistas que fizeram da ciência o lugar da verdade e o único meio para redenção humana e para um progresso supostamente infinito. Hoje observamos perplexos os efeitos da redução da razão a condição de “inteligência cega” ou “instrumento” movido por uma vontade que deseja compulsivamente dominar e controlar a natureza, a sociedade e o homem através do calculo e da planificação. O homem é transformado numa primeira e fundamental matéria-prima numa época de hiper-realização do real pela imagem e uniformizada pelo pensamento calculador. Portanto, numa época em que a ciência é obrigada a reconhecer que uma visão puramente objetiva da realidade é uma ilusão, ainda que essa realidade seja re-construída ou simulada pelas teorias científicas, nada mais oportuno do que tentar compreender o fenômeno da técnica e as demais ciências numa perspectiva fenomenológica e a partir de um contexto em que proliferam discursos e teorias que proclamam a passagem do paradigma cartesiano-newtoniano, mecanicista e determinista, da “ordem a partir da ordem”, para o paradigma da “ordem a partir do caos/ruído/acaso”, que propõe uma concepção mais holística, sistêmica, complexa e interdisciplinar de uma realidade re-habitada pelo mistério e processos irredutíveis ao cálculo.
Cada vez mais se desconfia de um suposto sujeito universal portador de um saber objetivo de uma suposta realidade apreendida tal como é. As experiências traumáticas de duas guerras mundiais, a barbárie nazista e seu extermínio industrial de pessoas por motivos racistas, fizeram com que os homens do século XX questionassem se realmente existiria progresso na história conforme leis lógicas que poderiam ser compreendidas. Entretanto, em meio a essa desconfiança em relação à técnica e às ciências, cada vez mais as relações entre os homens, o trabalho e a própria inteligência dependem da metamorfose incessante de dispositivos informacionais de todos os tipos. A Escrita, a leitura, a visão, a audição, a criação e a aprendizagem são capturados e mediatizados por uma informática cada vez mais avançada que exige ser pensada e questionada em seus pressupostos e condições de possibilidade. (Cf. LEVY, 1993)
Vivemos uma situação paradoxal: desconfiamos cada vez mais do ideal de um progresso infinito, enquanto nosso cotidiano é revirado e re-inventado por metamorfoses técnico-científicas. O inquietante é que esses processos sócio-técnicos raramente são objetos de deliberações do conjunto da sociedade. Eles estão nas mãos de uma tecnocracia que dirige e regula essa malha de informação das sociedades informatizadas. Daí a necessidade de pensar e problematizar o fenômeno da técnica e das ciências desvelando os elos que as vinculam ao nosso mundo, o mundo vivido, solo a partir do qual adquirem sentido. Ora, essa tarefa foi assumida pelo movimento fenomenológico em alguns de seus momentos fundamentais [Husserl e Heidegger] e em diferentes perspectivas.
De fato o impacto da técnica e das ciências em nosso cotidiano demanda hoje uma abordagem mais holística, sistêmica e complexa e, porque não dizer, o exercício do ver fenomenológico. Talvez assim a técnica e as ciências mostrem seu sentido enquanto práticas humanas que devem ser re-direcionada para a efetiva emancipação material e espiritual da humanidade. Ainda não temos o devido distanciamento histórico para analisar em todas as suas possibilidades e consequências o impacto da técnica e das ciências em nossas vidas. Um coisa parece certa, vivemos um desses raros momentos em que a partir de uma nova configuração técnica do conhecimento, ou seja, de uma nova relação com o cosmos e consigo mesmo, um novo estilo de homem e humanidade pode e deve ser inventado-formado. E a fenomenologia não pode deixar de se posicionar diante dessa exigência de uma nova maneira de pensar, dizer e sentir nosso ser no e para o mundo. Desde sua origem com Edmund Husserl, a fenomenologia sempre se definiu como uma ciênciadescritivados fenômenos, que pretende dar conta das condições de possibilidade das vivências conscientes e de todo aparecer e significação possível.Portanto, nenhuma esfera da existência humana ou campo de objetos possíveis, sejam reais ou ideais, escapariam à descrição fenomenológica. Não é por acaso, pois, que os fenômenos da técnica e das ciências, enquanto campos de criação de objetos, teorias, símbolos, leis e significados, sempre foram considerados campos privilegiados para o exercício do “ver fenomenológico”.
Coerente com sua vocação de “ir às coisas mesmas”, a Fenomenologia nunca cessou de perguntar pelo sentido e significado da técnica e das ciências e suas possíveis interações e repercussões nas diversas esferas das relações humanas, seja na educação, nas relações de produção, simbólicas e de poder. Entretanto, essa volta às coisas mesmas não quer dizer que seja preciso se limitar às impressões sensíveis imediatas. Se é verdade que os fenômenos se dão a nós por intermédio dos sentidos, eles se dão sempre como dotados de um sentido ou de uma "essência". Podemos mesmo considerar que uma das principais motivações para o surgimento da Fenomenologia foi a constatação de Husserl de que a Ciência e a própria Filosofia passavam por uma crise de sentido e fundamento. Todas as ciências, ainda hoje, daí a relevância e pertinência do tema proposto nesse congresso, além de comungarem com a atitude natural ingênua e dogmática diante do mundo, não conseguem esclarecer seus próprios fundamentos, seus pressupostos e condições de possibilidades. As ciências e a técnica padeceriam, assim, de uma alienação crônica, pois perderam contato com o mundo da vida (Lebenswelt), refugiando no mundo estéril dos puros signos e relações matemáticas. Há, pois, uma crise do ponto de vista da significação global da prática científica:
Nesse sentido, a fenomenologia se apresentou desde o seu início como uma tentativa para resolver uma crise geral da civilização Ocidental técnico-científica, que se desdobra numa crise da filosofia; numa crise·das ciências do homem e numa crise' das· ciências puras, crise da qual ainda não saímos. (Cf. Merleau-Ponty, 1990, p.1). É nesse contexto de crise do ideal da razão moderna técnico-científica de um pleno domínio e controle da natureza e sociedade via técnica e ciências, que a Fenomenologia, com Husserl, toma para si a tarefa de cosntituir a filosofia como uma ciência de rigor. Tarefa infinita e de gerações e que exigiria uma critica e explicitação dos pressupostos, fundamentos e sentido das atividades técnico-científicas, além da instauração de uma Lógica Pura - uma teoria da ciência que desse conta das condições de possibilidade e dos limites de toda teoria possível e que não repetisse os erros da tradição filosófica. Cabe ressaltar que essa atitude aparentemente negativa diante da técnica, das ciências e da tradição filosófica, que perpassa a obra de alguns autores do movimento fenomenológico, é uma decorrência da exigência da própria fenomenologia de instaurar um começo radical. O que exigiria uma completa ausência de pressupostos, seja no campo das ciências naturais, exatas, humanas ou no campo da própria história da filosofia. Entretanto, através de Husserl a fenomenologia reconhece que cada momento na história da filosofia e das ciências constitui um esforço necessário na revelação total da razão. E que o saber científico e o fenômeno da técnica se dão sobre a base de uma relação imediata e natural com o mundo e com uma realidade que não pode ser posta em dúvida. A técnica e as ciências pressuporiam, assim, uma fé na existência de um mundo exterior passível de ser conhecido, reconstruído e manipulado de forma objetiva pela via da representação. Elas, portanto, precisam ser questionadas, não enquanto meios a serviço do homem que estabelecem relações entre meros signos, mas em seus pressupostos e enquanto experiências vinculadas à vivencias originárias, pré-reflexivas, que antecedem qualquer reflexão e formalização. Nesse sentido, a fenomenologia pretende mostrar que a técnica e as ciências permaneçam alheias ao mundo da vida, solo no qual emerge toda espécie de atividade e significação, e se preocupam apenas com o mundo objetivado do cálculo e da planificação.
Em um pequeno texto de 1949 intitulado Ciência e Meditação, Heidegger mostra que assim como o ser da natureza é o incontornável da ciência da natureza, também o ser do homem, da história e da linguagem permanecem o incontornável para suas respectivas ciências. São presenças que se impõem no interior da objetividade científica a qual tem de recorrer a cada momento, mas que jamais conseguirá esgotar pela via da representação. Assim, por paradoxal que possa parecer, aquilo que as ciências não podem contornar (a natureza, o homem, a história, a linguagem) é, enquanto incontornável, inacessível às ciências. E somente quando nos ativermos a essa inacessibilidade do incontornável das ciências, é que a situação que rege o ser da própria ciência poderá ser elucidada (Cf. HEIDEGGER, Essais et Conférences, p. 69).
A própria técnica, apesar de estender hoje seu domínio por todo planeta, permanece impotente para pensar sua própria essência, uma vez que esta, segundo Heidegger, não tem nada de técnico. A técnica, por sua vez, não é um mero instrumento a serviço do homem, mas um “princípio epocal”[Heidegger] que determina todas as formas do homem pensar, sentir, dizer e agir hoje e que consuma toda história da metafísica Ocidental. A fenomenologia, portanto, não pode deixar de lançar seu olhar para esse fenômeno que hoje atinge dimensões planetárias - a mobilização total do mundo pela técnica. Tarefa que exige a retomada/rememoraçãode momentos e mutações que ocorreram ao longo da história Ocidental e conduziram ao domínio planetário da técnica. Ao colocarmos em questão a fenomenologia, a técnica e as ciências, no presente evento queremos extrapolar uma concepção de técnica e ciências enquanto meros instrumentos e conjunto de procedimentos para atingir determinados fins postos pelo homem. É preciso romper com a concepção antropológico-instrumental que concebe a técnica moderna, por exemplo, como um prolongamento e aperfeiçoamento da téchne grega.
A técnica moderna difere essencialmente da téchne grega, que remete a poiesis, a criação e produção de algo constituindo-se como um “des-velamento”. Além de uma mera capacidade para produzir algo, a téchne grega procurava imitar a physis - enquanto um produzir a partir de si mesma num constante emergir do velado para o des-velado. Por isso o caráter fundamental da téchne não reside na ação de fazer e de manejar, nem na utilização eficiente de meios, mas no des-velamento. Somente enquanto des-velamento, a téchne é uma produção (poiesis). Entretanto, o desabrigar que domina a técnica moderna não se desdobra num trazer à presença, num levar à frente no sentido da poíesis. Ele é um desafiar (Herausfordern) que estabelece, para a natureza, a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída e armazenada enquanto tal. Alguns autores como Heidegger e Husserl chegam mesmo a falar de um perigo que se alojaria na essência da técnica e que se apresenta com os sinais do progresso e bem-estar. Ora, mas o que há de novo em apontar os perigos da técnica? O fato desse perigo não estar nem nos produtos da técnica(computador, inteligência artificial) nem em sua utilização, mas na essência da própria Técnica e do conhecimento científico, que impõem ao homem e as coisas um modo especifico de virem a presença: como objetos disponíveis ao cálculo. (Cf. HEIDEGGER, Essais et Conférences, 1958)
Entretanto, é preciso reconhecer que, apesar da crescente fragmentação e alienação da ciência no mundo dos signos, o que se constata é que muitos dogmas em que se assentava o cientificismo do século XIX foram questionados ou derrubados no século XX, propiciando o surgimento de novos conceito e modelos teóricos. O Atomismo foi eliminado pela desintegração das partículas subatômicas que mostra a impossibilidade de se chegar, até o momento, ao elemento último da matéria. Cada vez mais nos convencemos de que não há separação rígida entre matéria e espírito, entre contínuo e descontínuo, entre sujeito-objeto-instrumento. O determinismo que conferia à Ciência o poder de uma previsão absoluta dos fenômenos regidos por leis imutáveis e mecânicas, foi eliminado pela Física Teórica(Quântica). Hoje muitos cientistas assumem que só podem lidar com aproximações, probabilidades, que nada é certo. Somos e estamos irremediavelmente entranhados num mundo de valores e significações que torna ilusória qualquer observação pura de um dado puro feito por um Sujeito puramente racional. Enfim, estamos num contexto de re-configuração dos saberes, leis e teorias científicas, que talvez exigem uma reformulação ou enriquecimento da própria fenomenologia em termos conceituais e metodológicos. Evidentemente, a fenomenologia pode e deve oferecer alternativas metodológicas, elementos conceituais e experiências que ajudem a consolidar essa nova percepção da realidade, da técnica, das ciências e do próprio homem. Daí nossa proposta de abrir um espaço para um possível diálogo entre a fenomenologia, a técnica e as ciências, no qual sejam explicitadas as possíveis contribuições do movimento fenomenológico para se compreender o fenômeno da técnica e o caráter das ciências que teriam nos distanciado do mundo da vida.
A partir das considerações precedentes, pode-se perceber o que nos incomoda, inquieta e serve de motivação para propor uma discussão acerca da Fenomenologia, técnica e ciências: o fato de cada vez mais, como já havia constatado Heidegger no início do Século XX, a existência começou a deslizar para um mundo sem profundidade. Todas as coisas escorregam para um mesmo nível, para uma superfície. Tempo tornou-se instantaneidade. A dimensão dominante tornou-se a da extensão e do número. Doravante, capacidade quer dizer o exercício de uma rotina, suscetível de ser aprendida por todos, conforme certo esforço. Essa avalanche uniformizadora da técnica e das ciências manifesta-se na forma de uma transformação do espírito em inteligência instrumental, uma mera habilidade ou perícia no exame, no cálculo e na avaliação das coisas, com o objetivo de transformá-las, reproduzi-las e distribuí-las em massa.A Ciência, por sua vez, surgiria dessa degradação do mundo do Espírito em inteligência cega e instrumental, fragmentando-se numa multiplicidade de disciplinas que estão a serviço das profissões e das exigências do mercado, mas distantes do mundo da vida. Daí a importância de se discutir as possíveis relações e determinações recíprocas de fenomenologia, técnica, ciências, explicitando, ao mesmo tempo, os pressupostos, as condições de possibilidade e limitações de tais conceitos/procedimentos num mundo que cada vez mais se mostra refratário ao simples cálculo e planificação.
Por fim, ao propor para discussão e reflexão temas de tamanha relevância e extensão, temos plena consciência da inutilidade de qualquer espécie de ativismo ou revolta diante da técnica e das ciências, sob pena de cairmos na armadilha do pensamento calculador. Não temos nada a fazer para evitar ou amenizar os efeitos devastadores do domínio planetário da técnica e da alienação crônica das ciências no mundo dos signos, só nos restaria, segundo Heidegger, esperar. Uma espera que não significa submissão ou resignação, mas que nos convoca para tomar decisões, assumir tarefas.
O IV Congresso de Fenomenologia do Centro-Oeste pretende, dentro de suas limitações, apontar as possíveis contribuições da abordagem fenomenológica para realização de algumas dessas tarefas.